“Preconceito ainda marca a dependência de drogas,uma doença do cérebro”

Artigo do psiquiatra Pablo Miguel Roig, CRM 24968

A dependência química é uma patologia que podemos considerar recente, não em relação à sua existência, e sim, devido a que só nos últimos tempos foi encarada como uma doença em seu tratamento e sua compreensão.
Na década de 50 do século passado, o Dr. Elvin Morton Jelinek, referência no estudo do alcoolismo, escreveu um livro cujo título é “The Disease Concept of Alcoholism”, dando uma clara noção que este conceito não estava internalizado, nem sequer pela sociedade científica. O conceito de doença…
A ciência conseguiu modificar alguns preconceitos ligados a doenças que mais que entidades nosológicas, eram vistas como maldições divinas, problemas de caráter, influência de maus espíritos etc. Temos como exemplos a lepra, que atualmente denomina-se Hanseníase em função da carga preconceituosa que os leprosos suportavam; a epilepsia, que estigmatizou os portadores da doença, dando um significado místico às convulsões; a depressão, que até consolidar o conceito biológico deste mal, tinha-se o conceito de ser um transtorno de caráter. São patologias que, na atualidade, não são colocadas como sendo de responsabilidade do doente ou de influências místicas. Nas adicções, a situação continua  carregada de preconceito, talvez pelo fato de que sua sintomatologia tem muito de condutual. O uso das drogas, tanto lícita como ilícitas, vem acompanhado de ruptura de regras e normas de interação social.


Estudos recentes mostram que a dependência química é uma doença do cérebro como é frequentemente afirmado, com apoio em trabalhos científicos incontestáveis, pela Dra. Nora Volcow. As drogas, quando usadas precocemente impedem o amadurecimento cerebral e seu uso continuado altera a relação de diferentes áreas do sistema nervoso central, modificando o equilíbrio entre o desejo, sua avaliação e a realização do ato. Mudam os critérios valorativos, as prioridades e transformam o adicto em um ser imediatista e impulsivo. É claro que esta é a descrição de um indivíduo com sua existência reprovável, mas não esqueçamos que ficar doente não é uma escolha do paciente e que tem uma série de fatores que influenciam a gênese desta patologia como os genéticos e os epigenéticos.
Não é infrequente que os serviços da saúde rejeitem pessoas que vem solicitar atendimento, ao se tratar de adictos.Pessoas não preparadas, incluindo profissionais da saúde, recusam-se a atendê-los, já que não é uma patologia que inspira simpatia nem acolhimento. Esta reação prejudica o processo terapêutico que somada à resistência social, ao despreparo do sistema de saúde e à tendência do paciente de negar a realidade que o acomete, por ser insuportável para ele aceitar ser portador de uma patologia tão humilhante, provoca a ineficiência dos esquemas terapêuticos para a doença. Como resultado, uma pequena porcentagem dos atingidos vem pedir ajuda de própria e espontânea vontade.
Um trabalho que apresentei no Congresso Argentino de Psiquiatria no ano 1978, quando ainda era residente do serviço de Psiquiatria do Hospital Italiano de Buenos Aires, visava a identificar os pacientes com uso excessivo de álcool que estavam internados em um simples dia na instituição. Usamos na época o questionário do Dr. A. Grimson e com a ajuda de todos os residentes pudemos interrogar a 500 pacientes em 24 horas. Nossa surpresa foi encontrar que 20% dos internados aplicavam como bebedores problema e alcoólicos. Nesta época, eu coordenava a equipe de alcoolismo do Hospital e éramos procurados por pacientes diretamente ou recebíamos indicações de outros especialistas. Por se tratar de uma instituição de alta complexidade com diferentes especialidades contávamos com as derivações de colegas de outras áreas da medicina. Mesmo com o potencial de pacientes que o Hospital tinha, atuávamos no máximo em nosso serviço, com o irrisório número de 6 a 8 pacientes. 20% de 500 é 100 em um dia só de pessoas que poderiam beneficiar-se de programas de prevenção e tratamento que não eram encaminhados a um setor específico!!! Vemos aqui a resistência de possíveis pacientes, dos profissionais da saúde e das próprias famílias que sentem a vergonha como motivação para sua atitude. Uma avaliação simples nos levou a perceber que os pacientes que procuram nossa ajuda, geralmente tem sua consulta induzida, quando não tem mais como negar e que geralmente passaram vários anos (de 5 a 8) consultando-se com qualquer especialista, menos o específico, formado e preparado tratar adicções.
É necessário rever nossa ótica em relação à dependência química. É uma doença como as outras, que tem agente etiológico, diagnóstico, prognóstico e tratamentos eficientes, que dependem de profissionais formados especificamente e que tem por função fazer parte de equipes multidisciplinares de abordagem múltipla pela complexidade e a característica multifacética da patologia. O processo de acolhimento e reinserção social, é de extrema importância. Ver os pacientes e suas famílias com compreensão e compaixão faz parte importante do tratamento, já que um fator de recaída sempre presente é a marginalização da vítima da doença.
 
*PSIQUIATRA PABLO MIGUEL  ROIG,  CRM 24968,   criador e  Diretor  da  Greenwood, clínica  referência no tratamento de dependentes de drogas  no Brasil,  na  Argentina, nos Estados Unidos e na Espanha.

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