OS NOVOS MESSIAS
Artigo do psiquiatra Pablo Roig, Presidente do Conselho Editorial do Instituto Greenwood, fundador e Diretor da Clínica Greenwood,CRM 24968
Em trabalhos anteriores em que descrevíamos a dinâmica familiar dos adictos, observamos uma constância e repetição de situações, condutas, lugares e alterações comunicacionais que caracterizam um modelo de funcionamento. Este apresenta uma rigidez dos membros que impede a evolução e o crescimento do sistema como um todo e sua interação frequentemente cronifica os participantes numa armadilha patológica com consequências próximas ou fadadas à fatalidade. Os dependentes químicos resultantes destes pactos conscientes ou inconscientes têm a função nesta micro sociedade que se assemelha à função que diferentes messias tiveram nas diferentes culturas.
Para relembrar traremos a história de Jesus Cristo, que na cultura cristã cumpre com essa função e que com seu sacrifício emula a humanidade, carregando os pecados do mundo. A história de Krishna, que viveu muito antes de Cristo (nascido em 3228 ac), repete a fórmula de nascer sem união sexual, vir ao mundo após a matança de crianças ordenada pelo rei Kamsa, para evitar o nascimento do oitavo filho que viria para matá-lo, ser um ser eterno sem nascimento nem morte, que veio à terra para aniquilar demônios. É vítima de uma flecha que confunde o seu pé com um animal, mas perdoa seu agressor já que estava dentro de seus planos abandonar a vida terrena e se retira para seu planeta original.
Nas escrituras do Evangelho, encontramos muitas semelhanças com o mito de Krishna e se olhamos para outras religiões, vemos a importância que a figura messiânica tem como fundamento de sua estrutura. Sempre está presente a dicotomia entre corpo e espírito. Sempre existe uma ruptura com o terrenal e uma elevação do escolhido a um plano superior. Sempre aparece o sacrifício como uma forma de redenção comunitária. Sempre existe uma ligação intensa do messias com o ser supremo.
Sendo bastante reducionista, vou analisar a função do adicto em sua família e a sua relação com o sistema como um todo. Nos trabalhos já publicados por E. Kalina e por mim, onde descrevíamos o modelo familiar do adicto, tanto masculino como feminino, mostrávamos como em nossa experiência clínica detectávamos situações que definíamos como pactos perversos que se sucediam e que culminavam no pacto criminoso, com a morte física ou psico-civil do paciente identificado. De maneira inconsciente e respondendo às necessidades interativas do sistema, estas famílias necessitam da função altamente patológica do adicto, que ocupa assim, um lugar que cumpre com diferentes missões interacionais, mas que atrai o foco patológico para sua pessoa, distraindo o sistema de seu verdadeiro conflito. Nesta organização patológica, o paciente identificado, por vezes é o agregador, o separador, o ditador, o súdito, o algoz ou a vítima, mas o seu sacrifício é vital para a manutenção do equilíbrio instável que se perpetua nesta micro sociedade. Muito se assemelha à função messiânica, que morre para carregar os pecados da humanidade. Muitos nascem de casais que não guardam os princípios básicos de um relacionamento baseado na mutualidade, no respeito, no cuidado e ,principalmente, no amor. Não são reconhecidos como indivíduos, com o direito à autonomia. Não são percebidos e como Lacan descreve na organização da identidade, não se percebem. Não “são” e devem “ser” para o outro. Não desenvolvem uma comunicação eficiente, já que foram tratados com duplas mensagens e passam a desacreditar na palavra usando-a em forma de atuação. Não conseguem desenvolver um vínculo estável com ninguém a não ser com a droga que lhes proporciona uma sensação imediata, anestésica, euforizante ou alucinatória, mesmo trazendo consequências desastrosas, mas que são questões futuras, portanto pouco importantes em pessoas que só vivem o presente. Não desenvolver a possibilidade de esperar e, portanto, pensar para analisar o que virá a médio prazo.
Estas limitações estruturais são acompanhadas com a destruição de sua estrutura biológica, com corpos e mentes torturadas pelo efeito tóxico das drogas e na procura de seu efeito psicológico. Magicamente vão procurando transcender e superar sua condição humana, sendo o corpo o que lhes proporciona barreiras e, portanto, deve ser agredido, aniquilado e desprezado como o representante concreto do limite e da própria morte. Como alega Kalina, “morrem para não morrer”. Nesta complexa situação, que não se limita ao paciente identificado, nossa intervenção terapêutica passa a ser uma tarefa integral, que abarca todos os implicados nesta condição mórbida. É claro que se o sistema afetado identifica um ou mais indivíduos como os detentores da problemática, nossa posição denunciante, muitas vezes é recebida como uma agressão e em muitos casos somos excluídos e identificados como os desestabilizadores, apesar de termos como finalidade procurar uma estabilidade e equilíbrio que não se sustente sobre a patologia de um ou mais membros. Nossa missão deve ser caracterizada por posições diplomáticas, baseadas na compreensão e evitando mensagens culpógenas. Devemos assumir uma posição “política” que oriente o sistema a assumir uma organização “democrática” e “republicana”, tendo em conta que, como repito incessantemente para minha equipe, “os pactos familiares são mais fortes que os pactos terapêuticos”. Isso deve ser internalizado por todo profissional que trabalhe nesta especialidade, já que frequentemente somos traídos, caluniados, agredidos e dispensados, sendo colocados na posição do perseguidor. Estas projeções das que somos vítimas devem estar bloqueadas pela “pele psicológica”, que como a física, nos permite preservar a nossa integridade, identificando o que é nosso e o que não é. Para isto, também é imprescindível o trabalho em equipe que, permite ter o apoio necessário, para ter um bom desempenho no tratamento de adicções. Numa publicação anterior, com título “O trabalho mais difícil do mundo” mostrava as dificuldades que enfrentamos os profissionais que nos aventuramos no tratamento de dependências químicas, e reitero a necessidade de termos informação e formação eficientes, vocação e estrutura firmes, esperança e paciência e equipes interdisciplinares, como elementos necessários para enfrentar as adversidades de nosso trabalho.