O trabalho mais difícil do mundo
Artigo do psiquiatra Pablo Roig, CRM 24968, Presidente do Conselho Editorial do Instituto Greenwood e Diretor da Clínica Greenwood, referência no tratamento de dependentes de drogas no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos e na Espanha
Desafios no tratamento
Estava vendo uma comédia neste final de semana cujo título é “O pior trabalho do mundo”, que descrevia as dificuldades do representante de um roqueiro adicto, para levá-lo a assumir a responsabilidade de se apresentar num show em Los Angeles, vindo de Londres. Eu mudei o título do meu trabalho, por acreditar que a tarefa não é ruim e sim difícil. Este filme, que mostra superficialmente e de forma romântica o trabalho de um produtor enlouquecido pelas atitudes irresponsáveis do ídolo, retrata as dificuldades de pôr ordem na incoerência do imediatismo. Eu, que venho lidando com as vítimas das dependências há muitos anos e que conto para esta tarefa com uma equipe experiente, tolerante e entusiasmada, enfrento as dificuldades próprias da doença, que nos leva a pensar, por vezes, no abandono da profissão para encaminhar nosso futuro para uma vida mais fácil.
Não há dúvida, que para exercer esta tarefa com responsabilidade é necessário que se tenha uma visão vocacional clara e empenhada, uma formação ampla e especializada, uma tolerância à frustração e um trabalho de equipe eficiente e que permita o apoio dos integrantes entre si com respeito e solidariedade.
A procura tardia para o prognóstico
Vou descrever as principais dificuldades que encontramos em nossa tarefa, lembrando, como frequentemente declara o Professor Eduardo Kalina, que “ninguém é original em sua patologia”.
Os pacientes chegam ao tratamento específico depois de muitos anos de terem entrado no seu projeto auto e hetero destrutivo. O começo de uso, geralmente acontece na adolescência precoce e segue uma sequência que vai desde as drogas legais para as drogas mais potentes e rápidas. Neste processo, os danos estruturais vão acontecendo de forma velada, ou não tão velada, mas acompanhados de uma visão negadora por parte do indivíduo, da família e da própria sociedade. As alterações de conduta, as mudanças de grupos sociais, a perda de produtividade, o desconhecimento do paradeiro dos filhos e de com quem andam por parte dos pais, das escolas e dos responsáveis, são minimizados e o barco continua andando de forma progressiva. A ação do álcool e da maconha, principalmente, alteram o amadurecimento cerebral, por um mecanismo neurobiológico bem conhecido, com consequências de curto e longo prazo e estas, junto com o tabaco, são as que se usam frequentemente no fim da infância e no começo da adolescência. Vai se criando em forma concomitante o conceito de solução química, imediata e inconsequente, que em forma progressiva vai minando os recursos egóicos dos usuários, transformando-os em indivíduos fracos, no quesito de enfrentamento a situações tanto positivas como negativas do dia a dia.
A estrutura biopsicossocial do paciente é ineficaz pelo uso prolongado de drogas
A droga transforma-se num elemento essencial na procura de modular as emoções, apesar de ser de uma ineficiência notável. O controle precário emocional, só é possível enquanto se está intoxicado, aparecendo as consequências do uso imediatamente a seguir. O efeito das drogas sobre o sistema nervoso central (SNC) modifica o equilíbrio que durante milhões de anos a natureza ocupou-se de estabelecer entre as áreas do cérebro, funcionando numa interação sistémica, que coloca o córtex frontal como a região de elaborações mais sofisticadas na condição humana. Esta região é justamente a mais agredida, enaltecendo a zona límbica, responsável pela impulsividade, mas que tem no seu meio o centro da recompensa que recebe a sensação de prazer e é uma região que no homem tem uma função mediada pelo córtex mesmo sendo a região límbico mesencefálica primordial em outras espécies naturais. O cérebro de nossos pacientes tem então, um funcionamento anômalo, com lógica e valores modificados, com sua consequente ineficiência pessoal e social. Os elementos valorativos e as prioridades deles chocam-se com os elementos de bom senso, de auto e hetero preservação, de solidariedade, de disciplina e dignidade. A colocação da droga como elemento prioritário, e compreensível, já que durante anos foi o recurso de controle das emoções, da interação social, mesmo tóxica, da obtenção de prazer, mesmo espúrio e nos leva a enfrentarmos na tentativa de reabilitar os adictos a uma batalha difícil e desigual. O que oferecemos aos nossos pacientes é o abandono dos recursos tóxicos para o desenvolvimento de habilidades próprias. Claro que isto leva tempo, o que não é bem visto por pessoas presentistas e imediatistas. O que propomos é uma situação, vista por eles como caótica e o tempo, na melhor das hipóteses, ajudará a ressignificar valores e prioridades, possibilitando a apreciação de situações prazerosas, não por sua intensidade e sim pela sua qualidade e principalmente pela ausência de consequências negativas. Para isso, é importante o desenvolvimento de elementos defensivos egóicos, deixando de lado a procura de soluções imediatas, assim como de satisfação da mesma índole e de consequências imprevisíveis.
Como abordar com esse projeto, alguém que vive o dia no presente, que não tem amanhã e que modificou seu conceito de recompensa e prazer, por receber estímulos irreproduzíveis pelas situações de vida normais? Como vinculá-los com um projeto a longo prazo e com resultados perceptíveis num futuro que não existe para eles? Como ajudá-los a renunciar ao recurso defensivo químico e escravizante mas imediato que foi usado em alguns casos por décadas para usar os recursos próprios, mas que não se apresentam no aqui e agora?
Estas incógnitas são trazidas à tona cada vez que enfrentamos a patologia de nossos pacientes, sabendo de antemão que este projeto necessita de muita dedicação, esforço, profissionalismo e experiência.
O tratamento ajuda o paciente a entender as regras pessoais, sociais e familiares
Inicialmente, nos transformamos nos “algozes” que tem a função de mostrar aos pacientes que a vida tem limites e que a sociedade tem regras e por esse motivo somos odiados e criticados e nossas atitudes cuidadosas são interpretadas como sádicas. É dito frequentemente aos nossos pacientes, que as regras comunitárias da Clínica não foram inventadas pela nossa equipe, mas são as normas de interação social que enfrentarão ao saírem da internação, quando este é o recurso terapêutico aplicado ao quadro. Solicitamos aos pacientes que tenham uma postura educada, respeitosa, disciplinada, solidária, etc… Nada de novo!!!
Pacientes e familiares questionam cuidados preventivos contra a COVID-19
Estou escrevendo este artigo durante a Pandemia da COVID-19 e tivemos que estabelecer algumas normas de higiene e conduta como forma de evitar a entrada do vírus na comunidade dos pacientes. Surpreendentemente, cada medida restritiva era combatida por eles e pelas suas famílias. Os profissionais, que arriscando sua integridade, vinham para cuidar deles eram agredidos com comentários que os colocavam como indivíduos sádicos e que tinham como único interesse complicar suas vidas com regras e limites. Devemos considerar que graças ao protocolo de prevenção da Clínica não tivemos nenhum paciente vítima de transmissão comunitária até o momento. Normas simples, como limitação de visitas e saídas, uso de máscaras, distanciamento social e outas restrições eram vistas como torturas contra a comunidade e recebiam críticas infundadas e incoerentes até por parte das famílias. Tivemos que realizar reuniões multifamiliares com um médico especialista em infectologia, que foi contratado para colaborar com as medidas preventivas e terapêuticas e durante as mesmas, as famílias apresentavam algumas soluções absurdas como forma de evitar a aceitação de normas preventivas, limites e qualquer situação que fosse considerada por eles de submissão. Neste período em que no mundo inteiro os profissionais da saúde são elogiados e homenageados como heróis, na nossa especialidade somos tratados como pessoas cruéis que não percebemos o sofrimento que causamos com nossos cuidados.
Famílias exigem resultados a curto prazo
Já que toquei no tema das famílias, vale a pena dar uma olhada nos seus sistemas, que devemos enfrentar. Geralmente as famílias dos pacientes têm características disfuncionais, que foram descritas pelo Professor Eduardo Kalina e por mim na publicação “Clínica e Terapêutica de Adicções “, nos capítulos “Violência nas famílias psicotóxicas” e “A família da mulher dependente”. São estruturas com um funcionamento anômalo que permite a convivência com a doença adicção por muitos anos. Na procura de solução para esta situação insustentável, mesmo que de percepção tardia, vão à procura de tratamentos dos mais variados, mas resistem a enfrentar a doença com recursos especializados. Vários de nossos pacientes passaram por tratamentos psicológicos, neurológicos, endocrinológicos, espirituais, de desintoxicação, internações curtas, redução de danos e a lista é interminável. Só depois de anos de evolução do quadro chegam a um tratamento específico, especializado, com a estrutura necessária para abordar a complexidade da patologia.
Estas mesmas famílias, que formaram os seus filhos dentro deste sistema perverso, salvo raras exceções, aceitam entrar em concordância com o projeto terapêutico, criticando, competindo, interrompendo o tratamento, pretendendo orientar as medidas terapêuticas, fazendo pactos com os pacientes e por fim culpando a instituição de qualquer falha de forma implacável, mesmo as ocasionadas pelos pacientes ou a família em si, num processo projetivo na procura de se eximir das culpas.
Nosso trabalho é o de ajudar aos adictos que nos procuram a encontrar uma forma de viver que seja melhor, mais digna, mais saudável, mais afetiva e mais integrada e recebe de nós uma atitude de extremo respeito, compreensão e continência já que estamos cientes do preconceito social que acompanha esta doença sendo que esta é a nossa missão. Apesar disso, não são poucas as oportunidades em que somos agredidos gratuitamente, de maneira injusta exigindo resultados que em muitos casos são improváveis pelas características do quadro do paciente. Assim mesmo, temos que atuar sobre estruturas muito danificadas, sendo que somos procurados de forma tardia e frequentemente induzida e somos pressionados pelos mesmos elementos que interagiram patologicamente durante anos, para soluções imediatas.
Sabemos a condição patológica da maioria das famílias que nos procuram e temos cuidado e respeito no tratamento com elas. Em todos os casos os familiares são atendidos em diferentes instâncias terapêuticas, já que o ponto de apoio para alavancar o tratamento é a família. Nos colocamos do lado dela e esperamos poder trabalhar com ela. Lamentavelmente, nem todas entendem a importância da parceria. No mundo ideal, os objetivos dos familiares, dos pacientes e da equipe terapêutica deveriam ter uma total concordância, mas frequentemente, a patologia do paciente e da família estabelecem um muro resistencial que induz o trabalho ao fracasso.
Para complicar mais a nossa missão, pelo fato de que a sintomatologia desta doença se caracteriza por alterações de conduta, que estão muito vinculadas às condutas psicopáticas, os pacientes, enquanto estão próximos do período de uso, tem atitudes francamente antissociais, mesmo não tendo essa estrutura. Qualquer profissional da saúde que tenha trabalhado com este transtorno de conduta, sabe que não tem muito o que fazer desde o ponto de vista terapêutico. Como estas condutas também fazem parte da sintomatologia do adicto, o diagnóstico de personalidade, a observação de sua capacidade de mudança, o vínculo e a sua relação com os afetos são os elementos que nos permitem estabelecer uma estratégia terapêutica que confirme ou não a possibilidade de êxito terapêutico, definindo se é uma situação estrutural do paciente ou um sintoma próprio da patologia adicção, portanto com melhor prognóstico.
Dependentes de drogas não acreditam que são doentes
Lidamos com uma patologia na qual os pacientes têm que ser convencidos de que têm uma doença. Em qualquer outra especialidade o médico é solicitado para extrair a condição patológica do paciente e na nossa especialidade, eles pretendem manter o contato com as drogas com a ilusão de controlá-lo, situação esta, definida por Kalina como o “aperfeiçoamento”, ou seja, continuar sua relação com o tóxico, mas sem consequências. No discurso inicial e as vezes contínuo, não se percebe uma real intenção de abandonar esse alimento mágico definitivamente. Eles mantêm a fantasia do uso controlado o que frequentemente é apoiado por família e amigos.
Mito sobre o tratamento:se o paciente não quiser, nada pode ser feito
Para agravar a nossa tarefa, existem modelos de tratamento bem intencionados e eficientes, outros bem intencionados e ineficientes e outros, claramente, mal intencionados. A característica médica, biológica da doença é frequentemente negligenciada. Os diagnósticos amplos, necessários para o estabelecimento de uma boa estratégia são raros e a visão da adicção como um problema de caráter faz parte de muitos dos modelos que são adotados na esperança de uma reabilitação. Toda esta parafernália de possibilidades, confundem a adoção de soluções, com recursos muitas vezes improvisados e ineficientes. Isto trouxe para nosso trabalho alguns preconceitos, que anunciam sentenças como a de que os tratamentos são ineficientes e de que nada pode ser feito se o paciente não quiser. Só para constar, tratamentos especializados, multidisciplinares, de abordagem múltipla, que possam se manter pelo período necessário e com um programa efetivo de ressocialização têm sérias possibilidades de reabilitação.
Chegamos aqui a um tema que é matéria de discussão há décadas e que não se chega a um consenso, onde cada tendência quer ter a palavra final na definição da forma de abordagem da doença. O que não se entende é que, independente do modelo adotado, este só terá efetividade após um diagnóstico amplo e preciso que defina o recurso mais apropriado pelas características do paciente e as do tratamento. De todas as formas, acreditamos que a atualização científica é de extrema importância e é o que atualmente norteia nossas atitudes terapêuticas.
Para complicar mais o nosso trabalho, a legislação que se aplica ao tratamento dos dependentes químicos é confusa, ambivalente e pelo fato de ser regionalizada, há diferentes interpretações segundo quem a aplica. Recentemente confirmou-se a possibilidade de realizar internações involuntárias, que apesar de ser combatida por alguns setores, atinge principalmente àqueles que perderam a possibilidade de optar, já que estabeleceram uma relação com a droga que se transformou numa prioridade insubstituível e não possuem elementos cerebrais que lhes permita manter a sua autopreservação. Mesmo assim a regionalização das normas traz uma enorme incerteza do que pode ou não pode ser feito desde o ponto de vista terapêutico e isto requer em nossa especialidade um trabalho extra, visando a não transgredir tecnicamente o tratamento, mesmo sendo as medidas médicas e bem intencionadas, respeitando o “matching” interativo as que deveriam indicar o tipo de intervenção. Não esqueçamos que se trata de uma doença.
Talvez o que defina nossas dificuldades no trabalho, seja um reflexo das características da adicção. Parece que os sinais e valores estão trocados. É como se na nossa calculadora invertêssemos a tecla de mais com a de menos. As contas derivadas desse aparelho dariam como resultado: 2+2=0 e 2-2=4.
Espero o dia em que nosso trabalho seja mais tranquilo e reconhecido com colaboração e respeito de todos os implicados.